1. Diz a
lenda que o povo é sábio. E
as lendas, embora não tenham por fundamento
verdade de rigor – por isso são designadas,
apenas lendas – assentam quase sempre em factos
ou em ideias vividas em tempos idos que já
lá vão, de antigamente e de
outrora, de noutros tempos há tanto
tempo.
Há tanto tempo, noutros tempos, vivi
o meu primeiro, Primeiro de Maio, como uma
novidade de rigor absoluto, seis dias após
a gloriosa cavalgada que abriu as portas ao
País que somos hoje, goste-se ou não
do que foi feito e concorde-se ou não
com os caminhos percorridos.
Antigamente, no outrora dos meus dezassete
anos, nesse dia primeiro, Primeiro, escrevemos
– eu mais os colegas de turma – com uma embalagem
de graxa auto brilhante, em meio lençol
roubado na lavandaria do colégio, os
dizeres, “Diga NÃO às esquerdas,
às direitas; diga SIM ao centro”. Devo
confessar que a frase não me fazia
grande sentido mas o Garcia, que era mais
expedito que a maioria disse que assim é
que ficava bem e todos concordámos;
o que interessava era percorrer as ruas de
Abrantes com um cartaz erguido bem alto, em
prol da revolução e de Abril…e
também dos exames que acabámos
por não fazer nesse ano.
Desse Primeiro de Maio ficou-me, para além
da imagem do lençol escrito a graxa
preta – engraxado – as frases ditas por alguns
oradores que usarem da palavra nas varandas
da Câmara Municipal, na Praça
Raimundo Soares. “Chorei e choro, porque os
meus filhos vão viver em liberdade”,
disse o Drº EC, vivamente emocionado.
No último Primeiro de Maio, tive a
felicidade de ter ouvido, via reportagem televisiva,
uma das mais profundas frases que até
hoje escutei. Não foi dita por nenhum
dos oradores – normalmente sábios –
que costumam usar da palavra, nem por jornalistas
nem por políticos. Foi dita por uma
popular; uma pessoa do povo – o tal povo que
é sábio – uma senhora que, provavelmente,
nem se deu conta do seu feito.
Disse a senhora, respondendo a uma pergunta
do repórter: “Eu, sempre que puder
vir, não venho faltar”. Assim mesmo,
sem mais comentários nem justificações.
E não venham os gramáticos nem
os professores de português nem os especialistas
linguísticos nem a drª Edite,
dizer que a frase está mal construída.
Aquela senhora estava ali de corpo e alma,
convicta, crente naquilo em que acreditava.
Quantas e quantas vezes, vamos sem ir ou partimos
ficando. “Sempre que eu puder vir, não
falto” é demasiado banal; “Sempre que
puder vir, não venho faltar”, não
é para qualquer um.
Minha senhora, muito obrigado pela lição!
2. “Cem Anos
de Solidão”, é um dos mais belos
– quiçá o mais belo – romances
que até hoje, tive o privilégio
de ler. Assenta sobretudo na grande imaginação
do autor; um perfeito delírio delineado
por entre momentos de fantasia imaginada e
imaginação fantasiada só
própria dos eleitos. Muito em comum
com os escritores sul americanos, mas profundamente
exclusivo de Gabriel Garcia Marquez.
Não se lê “Cem Anos de Solidão”
sem um calafrio e um dedilhar cuidado e musicado
por entre as páginas que enchem de
beleza e de mensagem literária, esta
obra verdadeiramente intemporal que nos faz
viajar por entre lágrimas e sorrisos,
amarrados à saga de uma família
que veio para ficar e que ficou, sem nunca
ter partido ou não ficado.
Não se espere encontrar neste romance
uma história com princípio meio
e fim, porque nesta obra, o princípio
é coisa que não existe e o fim
é facto que não chega a acontecer.
Tudo gira em volta da fantasia, do delírio
do autor e do seu audacioso estilo literário,
passeando-se e fazendo-nos passear por entre
uma revolução não localizada;
por entre um povo não adormecido; por
entre um sonho sempre sonhado e lado-a-lado
com pessoas “normais”, da aldeia, de um povo
que é sábio.